sábado, 16 de junho de 2012

Como ouro.

Estava cochilando no ônibus indo pra trabalho na grande cidade de São Paulo, quando olhei para o lado e para o chão e na outra fileira de bancos eu vi...
Aquele vãozinho entre um dedo de pé e outro, entre o mindinho e o vizinho, não dava para ver o restante dos dedos porque eles estavam numa sapatilha dourada.
Parecia tão bonita aquela imagem.
Minha visão foi subindo pelas pernas envoltas numa calça jeans, fiquei imaginando como elas seriam à mostra. Um belo quadril, uma bolsa com detalhes de latão dourado.

... espere aí...

A sapatilha era de OURO, os detalhes da bolsa eram OURO.
Pisquei, esfreguei os olhos e aqueles longos cabelos negros se viraram e sorriram para mim. Um sorriso se formou. Talvez porque eu estivesse de boca aberta ou com cara de bobo.
Ela colocou o indicador no lábio e depois fez o gesto com o mesmo dedo indicando para eu chegar perto e sentar ao lado dela. Eu fui, não havia escolha.
Sentei, fiquei piscando tentando falar, nada saia.
Eu pensava “você não tem medo de andar como todo esse ouro por aí, na cara de todo mundo?”
“É tudo o que eu tenho, e as pessoas estão tão ocupadas com suas vidas que não se interessam em imaginar que pode mesmo ser ouro. É tudo o que restou.”
“Peraí, estamos conversando sem mexer a boca... você está ouvindo meus pensamentos?”
“Sim, foi bem gostoso ouvir você pensando carinhosamente nos meus pés, e a luxúria quando olhou para minhas pernas foi acalentadora.”
Eu puxo uma quantidade de ar pela boca que nunca vai esfriar o calor no meu rosto, me sinto como um menininho pego tentando ver uma prima trocando de roupa.
“Relaxe, o tesão, como vocês dizem, foi puro e natural, não foi algo sujo. Você sabe quem eu sou? Há um pouco do sangue do meu povo em você, muito ralo, mas está aí, uma ou duas gotas.”
“Eu sei que você é de onde a Irlanda é. Você é Danu?”
“Um dos meus nomes, sim, sou eu. Assim como eu não sou aquela Danu, eu sou algo menos que ela, algo diferente.”
“Estou no ônibus com uma deusa, eu não sei o que fazer, eu devo me curvar?”
“Você já me homenageou com seus pensamentos, e isso é bom”

E como um bom idiota que estraga uma conversa perfeita eu penso:
“o que houve com você? Por que está aqui num ônibus?”
Ela se entristece, eu me arrependo e já é tarde demais...
“Eu já fui loura, sabia? Às vezes eu penso que sou uma telefonista humana que está entediada com o trabalho, quer alguém que cuide dela. Ir trabalhar sem ter que pegar dois ônibus. Uma telefonista que se sente uma deusa às vezes. Eu já fui loura, sabia?”
E nesse momento eu quer abraçá-la, beijá-la, dizer com convicção que tudo vai ficar bem, que eu vou cuidar dela... mas eu não posso, o pensamento racional me diz que eu posso cuidar de mim e não dar a ela todo o conforto e luxo que ela merece. Que por mais que eu ajoelhe e a ame/adore/homenageie/ore por ela todos os minutos do dia, não serei capaz de mantê-la deusa por mais do que alguns minutos. E eu me sinto um merda por isso.
Ela fala num tom que quem prestar atenção pode ouvir: “ei, está tudo bem. Você me ajudou bastante já. Alegrou minha manhã.” Ela pisca e põe a mão no meu rosto.
E eu sinto: é como sair de uma casa gelada no inverno e sentir o sol esquentando cada parte do seu corpo. O mundo se ilumina e eu vejo todas as cores explodindo, os pássaros cantando e o vento soprando no meu rosto. Ela está majestosa na minha frente.

Então o riso de adolescentes que apontam para mim me desperta. Ela gentilmente fecha minha boca empurrando meu queixo para cima. Ambos sorrimos. Os idosos à nossa volta estão sorrindo. Eles entendem. Acho que viram o mesmo que eu.
Ela pede licença, dá sinal e se dirige a porta.
Eu quero ir com ela, saber mais. Na minha mente ela diz: “está tudo bem”.
Enquanto ela desce, percebo que ela tem flores tatuadas nos braços que não estavam lá.
E há mechas amarelas em seu cabelos que já não são totalmente negros.

“Eu já fui loura, sabe?”